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Meu método para adaptar mídias diversas para RPG

Adaptar filmes e séries (ou de jogos, qudrinhos e animações) para RPG não é algo novo. É algo tão comum, que o mercado viu o quão lucrativo pode ser e passou a adaptar o conteúdo dessas mídias em cenários ou jogos completos de RPG.

Alguns anos atrás até escrevi sobre esse tema algumas vezes. Então por que decidi escrever mais uma vez? Dessa vez, venho compartilhar meu processo, como adapto e uso os mais diversos outros meios para minhas mesas.

O processo

Desde muito tempo venho ajustando o meu processo de adaptação. Depois de várias iterações, hoje estou com 7 passos que me ajudam bastante nessa tarefa. São eles:

  1. Consumir
  2. Anotar
  3. Esperar
  4. Ajustar
  5. Adaptar
  6. Testar
  7. Limpar

Tenho de lembrar que esses passos não são regras rígidas. Eu mesmo não sigo todos os passos ao pé da letra. Às vezes, eu pulo algum desses passos ou faço 2 ao mesmo tempo. Depende muito do meu tempo e do dia. Porém, costuma funcionar melhor quando sigo cada um dos passos, em ordem.

Consumir

Pode parecer meio óbvio, mas o primeiro passo é consumir conteúdo: assistir filmes e séries, ler quadrinhos e livros de RPG, e jogar video-games. Algumas vezes, tentamos adaptá-lo de algo sem mesmo consumí-lo em seu meio original. Ir por esse caminho dificulta bastante o processo, então vá consumir o que puder.

Geralmente, eu consumo de duas formas: passiva e ativa, nessa ordem. Costumo consumir esses meios de forma passiva para, simplesmente, aproveitar e me divertir. Nesse primeiro consumo, os pontos mais altos da história se destacarão facilmente. Eles são os mais fáceis de lembrar e os mais óbvios.

No segundo consumo, de forma ativa, já tento ser mais crítico e busco prestar bem mais atenção:

  • às escolhas do roteiro;
  • aos furos da história;
  • aos motivos dos personagens principais;
  • aos motivos dos antagonistas;
  • à trama principal;
  • às tramas secundárias;
  • aos cenários e locais;
  • aos itens, armas e armaduras;
  • às lutas e batalhas;
  • aos efeitos visuais;

Esses são os que mais foco, mas você pode adicionar ou remover itens dessa lista. Gosto de atentar a esses itens porque são os principais que eu trago para a mesa.

Vale lembrar que eu anoto a visão geral, a ideia principal, não os detalhes de cada um dos pontos acima. Se ficar preso ao detalhe, estarei recriando a mídia do jeito que consumi. Esse não costuma ser meu objetivo.

Sempre busco anotar de forma que o enredo e os personagens lembrem algo do material original, mas não sejam cópia do mesmo. Isso permite que os jogadores tenham liberade de criar novas histórias durante as sessões e associem com eventos do material original.

Também preciso de espaço para criar e poder me divertir, e fazer algo um pouco mais "genérico" permite isso. Utilizar a base que peguei de um filme de ação no estilo Rambo em uma aventura medieval, por exemplo, pode ser super divertido de adaptar.

Às vezes, é preciso adaptar de forma literal. Principalmente os ambientes e os itens. Alguns jogadores e grupos de jogadores preferem isso, já que os ajuda nas sessões. Imagine jogar uma aventura no estilo Velozes e Furiosos e encontrar o Dominic Toretto? Bem legal, não é?

Voltando aos pontos elencados, os dois primeiros pontos são para quando for adaptar o enredo em uma aventura ou campanha. As escolhas de roteiro ajudam a prever pontos que os jogadores podem escolher durante as sessões. Os furos são pontos que os jogadores podem aproveitar para tirar vantagem e tento ajustar.

Os motivos dos personagens principais e antagonistas ajudam a criar nossos NPCs. As tramas principal e secundárias servem para montar as aventuras ou campanhas com diversos ganchos para atividades que os personagens jogadores podem fazer.

Os cenários e locais ajudam nas descrições. E os itens, armas e armaduras serão criados para os NPCs para torná-los mais marcantes ou para os personagens jogadores como tesouros ou para serem comprados em mercados.

Os dois últimos itens são bem interessantes porque ajudam a descrever o que acontece nas batalhas e com os poderes que os personagens usam, ajudando a criar imagens mais vívidas na mente dos jogadores. A improvisação melhora bastante.

Como podem ver, atentar a isso tudo não é algo tão fácil quanto a lista inicial parecia. Dependendo do que estiver consumindo, terá de investir de 30min a 150min do seu tempo e não será apenas por diversão, para descanso. Será um grande esforço mental.

Por ser algo que requer tanto investimento de tempo e mental, não faço todos os dias. Para ser sincero, faço no máximo duas vezes por semana.

Anotar

Depois que consumi a mídia de forma ativa, tento anotar o máximo de informações possíveis. Não deixo passar muito tempo até fazer as anotações uma vez que as informações e ideias ainda estão bem recentes e "pipocando" na minha cabeça.

Faço essas anotações na ordem que elas surgem na minha cabeça. Enquanto anoto tudo, faço uso de muitas setas, sublinhados e asteríscos. Lançar mão desses pequenos chamarizes nas anotações ajuda a dar destaque, mas ao mesmo tempo não requer muita preparação e é fácil de fazer. Ajuda também a manter o foco em anotar tudo que vem à mente.

Por outro lado, o que não costumo fazer é tentar colocar tudo numa ordem lógica já nesse passo. Não faço isso porque se eu parar de anotar o que está na minha cabeça para organizar a informação, a chance de esquecer algo enquanto "arrumava a casa" é bem grande.

Muitas vezes, não tem como deixar aquele sentimento de que a ideia não anotada era aquela ideia. A grande ideia. A revolucionária. As chances dessa ideia esquecida ser revolucionário não são tão grandes. Porém, é provável que não será apenas uma ideia, uma informação que deixaremos de anotar, mas cinco, dez, quinze.

É uma bola de neve que temos de evitar criar ou lidar enquanto ainda está bem pequena. Assim, o tempo que já gastamos no primeiro passo, Consumir, não será em vão.

Imprescindível lembrar que, dependendo do tipo de adaptação, as anotações precisarão de mais ou menos detalhes. Então fique de olho em que tipo você quer seguir e atente-se ao nível de detalhes.

Esperar

Um passo muito importante e tão difícil quanto qualquer outro. Sei que parece clichê, e que muitos escritores falam para fazer isso, mas é verdade. Deixe todas as informações que você anotou descansando por uns dois ou mais dias.

Da mesma forma que anotar após consumir alguma mída é importante, também é importante deixar o cérebro trabalhar um pouco todas as informações em "plano de fundo".

Não apenas isso, esse "descanso" ajudará você a enchergar possíveis erros que você cometeu, tanto de escrita quanto da informação que você anotou. Também permitirá que veja furos que deixamos passar e como todas essas informações se conectam.

Não subestime o poder desse passo!

Ajustar

Passado o tempo de espera, é hora de ajustar todas essas informações de forma coesa, ordenada. As setas usadas durante as anotações ajudam bastante nessa hora.

Aqui, ajustar também significa:

  • remover os erros de anotações percebidas só agora;
  • os furos dentro das suas próprias anotações;
  • novas conexões do enredo original;
  • novas conexões gerando novos enredos;
  • removes conexões e passos;

Ao reler o que escrevemos depois do tempo de espera somos capazes de identificar erros nas anotações que fizemos e não atentamos durante a anotação.

Às vezes, também percebemos que esquecemos de anotar informações importantes ou interessantes. Assim sendo, precisamos acabar com os furos dentro das nossas próprias informações.

Repassando por tudo, somos capazes de ver novas conexões do enredo original que não eram tão evidentes. Essas são sempre muito boas de utilizar em aventuras já que são mais difíceis dos jogadores descobrirem de onde veio.

Embora tenhamos feitas várias setas criando várias conexões, podemos criar outras novas conexões. Essas novas conexões costumam servir como ganchos ou outros caminhos que os personagens jogadores podem seguir. Isso nos prepara para as mais variadas decisões que os jogadores tomarem.

Não esqueça que também é possível remover conexões e passos. Fazer isso nos leva a criar algo que sirva para uma única sessão (one shots) ou a aventuras mais simples, sem muitos elementos, apenas os mais óbvios.

Essas aventuras mais simples são ótimas para usar com jogadores iniciantes já que o caminho que eles devem seguir é bem óbvio e traz um sentimento de recomensa por terem conseguido pensar neles por conta própria.

Até aqui, temos algo relativamente genérico e pode ser usado em vários cenários, com vários sistemas ou com diversos grupos. Podemos parar aqui se quisermos apenas ter em nosso arsenal que podemos utilizar quando não tivermos o que jogar e de fácil ajuste.

Agora, se quisermos algo mais profundo, mais ajustado para algum cenário, sistema, estilo de jogo ou grupo, é hora de continuar e praticar os dois últimos passos.

Adaptar

Caso você não esteja usando algum cenário existente, esse passo pode ser pulado. Ou

Caso contrário, adaptar o enredo, personagens, itens, e tudo mais para dentro do cenário trará uma verossimilhança. Os jogadores sentirão que a aventura avança o cenário, faz parte da vida do mundo em que estão jogando.

Testar

Essa é a hora de jogar. Um passo imprecindível e talvez o único que eu sempre coloco em prática. Usar nossas adaptações e depois das sessões coletar feedback dos jogadores, daquilo que eles acharam que funcionou ou que não funcionou.

Esteja aberto a todos os tipos de críticas. Sejam em favor a suas escolhas ou contra. Não se apegue tanto ao seu trabalho. Saber ouvir esse feedback ajuda bastante a evitar certas escolhas tidas como erradas em próximas adaptações. Também coloca as escolhas tidas como certas um grau acima.

Teste várias vezes e com grupos diferentes. Dviersificar os grupos também diversificará o feedback. Quanto mais grupos e pessoas diferentes participarem da etapa de testes melhor. Com isso, evitará que as opiniões apenas sejam extremos, ou muito bom ou muito ruim.

Limpar

Após o feedback, volto ao que escrevi e aparo as arestas, reescrevo o que for preciso e testo de novo com outro grupo. É um ciclo que continuo por mais uma ou duas vezes.

É algo que parece ser cansativo de fazer, jogar de novo e de novo as mesmas aventuras e campanhas (às vezes até é), mas é preciso e vale à pena. Depois disso, posso dizer que tenho algo que funciona para jogar com a maioria dos grupos, em eventos, sessões únicas (one shots)...

Exemplo de adaptação

Cavaleiros do Zodíaco

Ao assistir Cavaleiros do Zodíaco com minha filha e querer aproveitar seu entusiasmo, decidi que iria adaptar a série. Reassisti vários episódios com ela (do novo da Netflix e do velho também), alguns dos filmes e coloquei meu processo em prática.

A primeira decisão que tomei foi que a adaptação seria mais genérica. Eu não adaptaria a saga da Guerra Galática ou as 12 casa daquela época do desenho, com aqueles personagens e cenário per se. Com isso em mente, passei a fazer minhas anotações. Dentre as várias anotações, tinha:

  • Os cavaleiros precisam conquistar suas armaduras;
  • Os cavaleiros começam em um nível bem baixo e vão crescendo aos poucos;
  • Cavaleiros de níveis mais altos sempre demoram a aparecer ou aparecem para alguma cena importante do passado de algum dos personagens principais;
  • A deusa Atena estaria presente? E que perigo ela estaria dessa vez?
  • Outro deus tentando matar Atena?
  • Adaptar a saga das 12 casas? Não precisam ser os mesmos da série ou filmes; Futuro?
  • Adaptar algum dos filmes?
  • Histórias de cavaleiros de outros deuses?
  • Zeus entra em cena
  • Seria algo diferente?
  • Personagens: todos jovens adolescentes e órfãos; um que se acha mais que os outros; um que é no estilo anti-herói; outro que é bobo mas luta por seus ideais e amigos; outros que são irmãos; um que não se mistura com os outros; rivalidade entre dois dos personagens principais; desconfiança inicial entre todos;

Com esses pontos e mais vários outros (que não escreverei para poupar espaço), deixei de lado por uns 2 ou 3 dias enquanto assistia mais episódios. Quando voltei para a lista, parti para os ajustes.

Dois conjuntos de ligações ficaram marcadas na minha mente foram:

  • Saga original 12 casas > "Algo diferente" > Zeus entra em cena
  • Os cavaleiros precisam conquistar suas armaduras > Zeus entra em cena

De certa forma, eu poderia ter criado os seguintes enredos "genéricos" que funcionam para qualquer cenário ou ambientação:

  • O deus dos deuses está em ira com a humanidade por outros deuses terem passado a ter maior destaque que ele próprio. Por isso, resolveu que atacará a humanidade e a recriará para voltar a ter fiéis. Os personagens dos jogadores, sendo ou não atrelados a alguma outra divindade, buscariam parar essa ameaça e teriam de passar por 12 desafios antes de chegar ao deus dos deuses;
  • Os deuses antigos querem voltar a ter poder. Com isso buscam novos acólitos para que possam fazer parte de seu novo exército. Aqueles que se mostrassem fiéis e merecedores, ganhariam armaduras com poderes para lutar por esses deus;

E esses dois enredos poderiam desenvolver várias das ideias que Cavaleiros do Zodíaco teve no anime ou no mangá mas em um cenário tipo Tormenta ou Forgotten Realms, por exemplo.

Contudo, como queria aproveitar o entusiamo da minha filha por CdZ, decidi ir atrás de adaptar essas ligações em enredos para a própria ambientação de CdZ.

Como Zeus quase não aparece no anime nem no mangá, decidi trazê-lo de volta. as duas ligações tem Zeus no meio, mas não sabia qual escolher. Acabei pensando como faria para adaptar um dos dois. Nessa hora surgiu uma nova conexão:

  • Os cavaleiros precisam conquistar suas armaduras > Saga original 12 casas > Zeus entra em cena

Dessa conexão surgiu a seguinte ideia: Zeus estava desaparecido não porque algo de ruim aconteceu com ele mas porque decidiu se afastar dos outros deuses. Como os outros passaram a ser vangloriados mais que o deus dos deuses, ele decidiu que iria instituir uma nova era, de novos deuses, semideuses e lendas.

Apenas ele, como o maior de todos, deus entre deuses, seria conhecido como Zeus, O Antigo. As novas lendas, semideuses e novos deuses serão seus cavaleiros, seu exército.

É aqui que começa o enredo e parte da aventura. Os jogadores (nesse caso minha filha) terão de conquistar uma posição entre os cavaleiros de Zeus. Ainda não existem cavaleiros equivalentes ou de ouro (Novos deuses) ou de prata (semi deuses).

Uma vez que as posições mais baixas, chamados de Lendas (equivalente aos cavaleiros bronze) sejam preenchidas, Zeus criará 12 desafios. Os desafios são muito difíceis e, muito provavelmente, raros seriam os guerreiros dos exércitos dos outros deuses que conseguiriam passar. Dependendo de quantos desafios conseguirem realizar, serão classificados como semideuses ou novos deuses e receberão novas armaduras.

O objetivo base que criei para os personagens jogadores é que eles consigam uma posição entre os novos deuses. Material suficiente para uma campanha das boas. Exemplos de algumas aventuras que podem acontecer:

  • Batalhas com cavaleiros dos outros deuses;
  • Refazer os 12 desafios de Hércules;
  • Obter amostras de itens que possam destituir os outros deuses;

Por fim, espero que vocês tirem uma ou outra ideia daqui. Adaptem o que acharem legal, descartem o que não gostarem e criem seu próprio método. E, se puderem, compartilhem para que outros possam aprender também.

Até a próxima.